“Pequeno Inventário da Imensidão”

DESCRIÇÃO

Texto publicado na prestigiosa revista portuguesa Egoísta. O tema da edição era “Viagens” – e o design, com uma faca na lateral, transformou a revista em uma mala.

TEXTO COMPLETO

Viajo lentamente com o dedo sobre o rio; acompanho a cobra verde de cima, da janelinha do avião. Manchas verdes fosforescentes contrastam com o verde escuro do rio e dançam sobre o sei corpo. Rio-serpente, rio estampado, circundando a floresta labirinto: sobrevoo a Floresta Amazônica.

Desembarco. Embarco sobre o chão líquido: mergulho no mundo dos barcos. Uma embarcação de madeira, três andares e redes coloridas atravessando o barco, Cosmococas de Helio Oiticica. Índios por todos os lados e de todas as tribos. Pé direito baixo, ando dobrada através das redes, Alice que cresceu demais no País das Maravilhas.

Entro na cabine minúscula, me sinto dentro da cabeça de John Malcovich no filme. Não quero ser John Malcovich: quero ser índia, como a linda cunhatã  que me observa e timidamente vira os olhos ao ver que a percebi.  Me faço sanduíche no beliche. A porta arredondada da cabine emoldura a paisagem: selva, rio, praia, pássaros. Paisagem móvel, quadro líquido. A imensidão vem aos poucos. O rio Negro me traz luz, rio, peixe, boto, árvore, céu e floresta enquanto permaneço deitada, em estado de planta. A expressão espelho d’água ganha a sua mais completa tradução: as nuvens estão no fundo do rio, as árvores se duplicam na água. Se toco na água, toco no céu e na floresta. (Até este momento, um rio é um rio e uma árvore é uma árvore). E eu me afundo neles de tanto olhar.

Um mundo pontilhado se move pelo espaço: insetos também são passageiros do barco.  Besouros fazem amor encontrando-se no ar, moscas, mosquitos, mosquitinhos, grilos, mariposas, o minúsculo se impõe sobre o imenso. Uma aranha flutua sobre o Rio Negro costurando seu caminho invisível, e a escuridão contorna o barco e eu sou uma gota do rio

“Não vivo no ar, suspenso como passarinho. Também não vivo fincado na terra como um rinoceronte. Nem vivo boiando na água como um peixe. Vivo, sei que vivo, é no universo infinito que para lá de mim, para cá de mim, ao meu redor, sempre existiu e existirá. Igual a si mesmo”, diz Darcy Ribeiro no livro que leio, quando consigo tirar os olhos do cenário.

Ele agora me traz o pôr-do-sol e um barquinho de madeira transportando piaçaba em rolos. A tripulação de lá acena. A de cá também. Uma profusão de mãos se oferecendo, sabendo que jamais se tocarão. Imagino como seria a vida se todos os motoristas acenassem uns para os outros no asfalto, uma cordialidade impossível.

Começa a chover. A floresta tem relógio biológico, a chuva tem hora para começar e acabar. O Rio Negro na tempestade move-se com a nova pele que a chuva lhe traz: relevos azul claro azul escuro, manchas móveis. Em meia hora a água para de cair. As nuvens cinzas se vão, no lugar delas  o sol volta a se deitar sobre o rio. A água, qual pele que ninguém pode ferir, é acariciada pelo homem e pelo peixe”, escreveu Paul Éluard, e o rio Negro acaricia a floresta e é acariciado pelos peixes. Coloco pés e mãos na água,  assim eu caminho. Anfíbia.

Na margem do rio, uma pequena comunidade com palafitas de madeira envolta pela floresta. Crianças brincam sobre um tronco de árvore. Uma mulher pesca sem anzol, a linha cortando silenciosa a água. Suponho ser Daracuá, a ilha onde os botos vem comer na sua mão. Incluo no mapa que crio com o olhar. Neste momento, o rio é uma criança e uma criança é o rio e eu sou uma gota deste rio e o riso desta criança.

Anoitece. Subo para a proa. Sem eletricidade nem civilização ao redor, o céu se emenda com a floresta e com o rio, e atravessamos um fundo negro infinito e estrelado. Nunca o universo esteve tão disponível para o toque. O barco atravessa o universo flutuando entre os planetas, e quase posso encostar nas estrelas. O silêncio dos peixes, do rio, dos pescadores e dos índios continua existindo mesmo quando aumentam a música no restaurante do barco. Meus olhos procuram estrelas cadentes e o que vejo é um peixe prateado pulando no rio, o rio é o céu e o céu é o rio.

Sonho que em meu corpo passeiam peixes de plumas, me fazem cócegas, um boto me empurra enquanto escuto sapos e pássaros noturnos. Cada respiro é uma braçada que me leva adiante.

De manhã um sol líquido me acorda, inunda a cabine, Terra à vista! O rio entra da porta para a mala e eu vejo algo como uma cidade, uma igreja. Desço. Alguém me estende a mão para que eu passe do chão móvel para a terra firme. Piso, observo, começo novamente a utilizar minhas pernas – asas, nadadeiras? Observo a paisagem, não me descolo dela. Agora, um rio é um rio, uma árvore é uma selva e uma mulher é uma mulher, mas eu caminho com os pés um pouco acima do chão.

PUBLICAÇÃO

Revista Egoísta, Portugal

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